sábado, 18 de fevereiro de 2006

VIDRO AZUL


























Notas frágeis, sons de alma, viagens neste e noutro tempo, paisagens de sombra e nevoeiro



Situa-se naquele território da bela longinquidade sem ser distante nem sequer hermético.
Numa má comparação, diria que é um “oceano pacífico” (de águas mais profundas) do futuro a que entretanto já chegámos. Está, com as devidas diferenças, na linha da “Íntima Fracção” e é herdeiro dos extintos programas de autor onde predominava a toada calma – não lenta – de uma certa proximidade, proporcionador de reflexão por parte do ouvinte. Todo este quadro é realizado através de uma voz suave, calma e pausada, pela riqueza estilística de sons e canções em desfile, contendo uma indispensável componente informativa sobre o que nos é oferecido musicalmente, acasalando com indiscutível felicidade o novo com os outros tempos. A predominância está na música dita alternativa. E é mesmo uma alternativa, principalmente nos dias de hoje. O bom senso e o bom gosto moram aqui. Basta visitar o blogue do programa. Em calendários mais saudáveis, este programa, esta composição sonora, teria lugar merecido e garantido numa emissora de maior dimensão no espectro radiofónico nacional. Tal não acontece, como sabemos. “Vidro Azul” é um todo, embora separado por um intervalo publicitário que divide as duas horas de emissão. Via Internet, o todo está lá! É assim o programa de Ricardo Mariano, na RUC – Rádio Universitária de Coimbra, na Internet para descarregamento em formato mp3 e também em Podcast. Para ouvidos limpos e espíritos pouco sobressaltados.


Entrevista a RICARDO MARIANO


Quando começaste a fazer rádio?

Fui seleccionado para o curso de programação da Rádio Universidade de Coimbra em 2000. A RUC, todos os anos, promove cursos de Programação, Informação e Técnica. A partir de Abril de 2002 – e ainda como formando – comecei, efectivamente, a fazer rádio... inicialmente através de uma crónica chamada "Quarto Escuro" no programa Metro do Pedro Arinto. Nessa experiência inicial fazia uma espécie de abordagem discográfica e biográfica a cantautores que gostava (e gosto): Nick Drake, Mark Kozelek, Stina Nordenstam, Mark Eitzel e outros.

Quando começou o "Vidro Azul"?

A primeira emissão foi para o ar no dia 14 de Outubro, ocupando o espaço 20h-21h na grelha de Inverno de 2002 – lembro-me que abri com o tema “Sacrifice” da Lisa Gerrard.
Sabes, acho que poucos sabem mas o “Vidro Azul” (VA) entrou na grelha mesmo à última. Como eu era dos poucos que já trabalhava – a maior parte dos meus colegas nesse ano ainda estudava – tinha pouquíssimo tempo disponível. Um dia, numa sessão de spots, olhei para a grelha ainda provisória e vi aquele buraco das 20h. Achava-o ainda muito, como dizer… pouco nocturno mas, como não me causava grande transtorno pessoal avancei com a proposta. Foi aceite.

Agora o programa também habita o universo Podcast

Já há algum tempo que pensava numa forma de disponibilizar o programa para lá do directo e da emissão online. Foi aventada a hipótese de se colocarem, para audição stream, alguns dos programas da RUC através do servidor da rádio. No entanto, por razões técnicas que desconheço, foi impossível concretizar essa pretensão. Assim, o Paulo Santos, um amigo e realizador do excelente “RuClub” (programa de Jazz na RUC), incentivou-me e ajudou-me a criar o Podcast utilizando o mesmo serviço que ele. Foi assim, no final do ano passado.

Achas que o Podcast é uma ameaça à rádio tradicional?

Não acho que seja uma ameaça... pelo contrário! O caso do VA é paradigmático. Como programa da RUC, rádio com sintonia de espectro limitado, o Podcast possibilita a todos os que não residam em Coimbra ou que, na altura do directo não podem escutar via emissão online, ouvir o programa durante a semana até à emissão seguinte.
Pelas reacções que vou tendo e percebendo, ninguém deixa de ouvir o directo do VA – se puder fazê-lo – para ouvir o programa mais tarde, por download em formato Podcast. Há, de facto, algumas pessoas que depois do directo guardam o programa para repetirem a audição – o que muito me lisonjeia – e esta é uma das extraordinárias qualidades do Podcast. Poder-se gravar, numa qualidade óptima um programa de rádio. É magnífico.

Até onde achas que vai ter este fenómeno?

Sinceramente, não sei. Gostava muito que o Podcast servisse como um formato promotor da rádio de cariz alternativo que se vai fazendo por aí. E se calhar isso vai acontecer, espero. Acho que vai crescer muito. Por arrasto, quando as coisas se agigantam, surge muita coisa má. No entanto, o Podcast tem potencialidades divulgadoras e informativas extraordinárias.

O programa "Vidro Azul", de que és autor, está a fazer o caminho inverso. Começou numa rádio e agora está em Podcast. O Podcast é a salvação para os autores?

Não vejo as coisas assim. O Podcast é um complemento do VA. Existe para possibilitar a escuta para os que antes não o podiam fazer. Poderá, no entanto, ser importante para dar voz àqueles que estão "abafados" nas rádios de sintonia nacional e mais não podem fazer – há excelentes exemplos por aí. Houve rádios que mudaram para pior, tendo gente de uma qualidade excelente e agora desperdiçada. O Podcast para essas pessoas pode ser um novo respirar.

Mas gostarias que o "Vidro Azul" continuasse no éter? Se sim, gostarias que o programa "Vidro Azul" encontrasse espaço numa rádio com maior dimensão?

O lugar do VA é no éter. Essa é a minha paixão. Não o concebo de outra forma e é aí que me sinto confortável. Sabes, já quis que o VA explodisse para mais gente, numa rádio maior. Mas, nunca tentei, e por tudo aquilo que tenho dito, seria impossível. Não há quem me queira – nem sei se tenho qualidade para outros voos – e estaria sujeito a critérios editoriais que desvirtuariam a linha estética do programa.

Como vês o panorama actual das rádios em Portugal?

O produto das rádios nacionais, de sintonia nacional, é muito igual e absolutamente desolador. Estas rádios são, cada vez mais, formatadas, obtusas, espelho das castradoras playlists que afogam o papel do realizador de rádio e abreviam a oferta de novos, alternativos e criativos programas de rádio. Depois isto é um ciclo vicioso. As rádios das massas regem-se, inevitavelmente, conforme os critérios e padrões umas das outras. Falta coragem, muita coragem. Temos as antenas 1, 2 e 3: a rádio pública. A Antena 3, quando surgiu, assumiu-se como uma rádio diferente. É o que se vê!... Com a excepção de alguns programas nocturnos, não oferece nada de novo. A Antena 2 lá se vai abrindo ao Jazz – ainda pouco – mas tem ali espaço para tanto e ninguém põe mão naquilo. Será que, por exemplo, a “Íntima Fracção” do Francisco Amaral não cabe ali? Haja coragem!

Referiste-te às playlists… o que pensas do uso e abuso das playlists?

As playlists são uma imposição das grandes editoras. Infelizmente, no nosso país, há muito o "efeito bola de neve" – as rádios nacionais tendem a seguir as piores políticas.
É claro que as rádios menos poderosos têm de seguir estes critérios editoriais para sobreviver, mas, a meu ver, as playlists são impostas pela indústria e as rádios nem esperneiam.

O que pensas da nova lei sobre as quotas de música portuguesa?

Ridícula, ditatorial, mais uma perigosa e negra notícia para a rádio. Obrigar-se uma rádio e os respectivos realizadores (se ainda os há!) a passar uma percentagem delimitada de música portuguesa é de um autoritarismo bacoco impressionante e datado. Depois é a história da música que se oferece... estou certo que a música portuguesa de qualidade não vai passar (essa, salvo raras excepções, nunca passa). A rádio vai jorrar uma autêntica "Chuva de Estrelas".

És ouvinte de rádio? Quando começaste a ouvir e o quê?

Gosto muito de rádio. Lembro-me de escutar muito a "Hora do Lobo" do António Sérgio, depois a "Íntima Fracção" do Francisco Amaral – que infelizmente descobri tarde – e, desde sempre, a RUC.

Da rádio que actualmente ouves, o que é que não perdes de ouvido?

As notícias e o desporto da TSF e Antena 1 e o que a RUC passa.

E os radialistas que mais gostas. Quais são?

Continuo a gostar do António Sérgio mas, as minhas referência são, desde sempre, o Pedro Arinto (RUC) e Francisco Amaral (RUC). No entanto, também gosto do estilo de locução do Henrique Amaro... tem muita sobriedade. Tenho, também, colegas na RUC que são óptimos: Paulo Santos (“RuClub”), Inês Saraiva (“Livro de Cabeceira”), Rui Caniço (“Botox”), Inês Patrão (“Inter Rail”) e outros.

Tens saudades dos tempos das piratas?

Bem, eu não acompanhei esses tempos. Embora já ouvisse a RUC enquanto rádio Pirata. Mas, felizmente, ela é ainda "meio pirata"!

O "Vidro Azul" é o "teu" programa ou o programa "possível"?

É, definitivamente, o meu programa!!

O que dizes dessa experiência de trabalhar numa rádio de autores como a RUC? Respira-se um ambiente estimulante e de criatividade contínua?

Sem dúvida. A liberdade é total e partilha-se de uma forma muito forte e emocional o amor que se tem pela rádio. Somos todos uns carolas, ninguém recebe. Ainda há diletantes e isso é comovente e sustenta o espírito da RUC.

Tens tido bom feedback do programa através da Internet e do Podcast?

Sim, a resposta tem sido surpreendente... o que me deixa um pouco embaraçado.
É óptimo saber que vou tendo novos ouvintes e que eles podem chegar do mundo inteiro. E depois é engraçado perceber que havia pessoas que passavam há muito pelo blogue e nunca tinham escutado o “Vidro Azul”. O Podcast veio possibilitar este encontro.

Queres continuar a fazer rádio até que a "voz te doa"?

Sim, claro. A rádio e a música provocam-me um sentimento inexprimível.


VIDRO AZUL
Um programa de rádio e outros "estilhaços"...

RUC – Rádio Universidade Coimbra (107.9 FM ): 2ª Feira (23:00/01:00)
Repetição: Sábado p/ Domingo (02:00/04:00)
Rádio: http://www.ruc.pt/
Blogue:http://www.vidroazulruc.blogspot.com/
Podcast:http://www.vidroazul.libsyn.com/


Os programas de autoria nas rádios locais gozam de uma liberdade criativa actualmente quase inalcançável nas estações de maior dimensão. Há casos de puro amadorismo, onde ainda se joga com amor à camisola, o que é compreensível e necessário, pois as pessoas que querem fazer rádio têm de começar por algum lado. Existem programas com longo historial nas pequenas rádios e que já se tornaram "parte da mobília". São marcas das estações que os emitem e têm seguidores atentos e fãs fiéis. Estes realizadores, de alma romântica, subsistem no éter pelo poder da força de vontade e não pela vontade da força.


Francisco Mateus



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