domingo, 20 de novembro de 2005

Num domingo qualquer



















Vergílio Ferreira disse: O tempo que passa, não passa depressa. O que passa depressa é o tempo que já passou! Verdade indesmentível. Depois de terem passado pouco mais de vinte anos sobre as memórias que se seguem, sente-se que duas décadas passam depressa e, afinal, não é assim tanto tempo. O que mudou na rádio portuguesa em vinte anos é que foi muito. Em 1982, por exemplo, num domingo qualquer, havia programas de rádio absolutamente irresistíveis. Vivia-se a então denominada doce mania de rádio, a frase chave do FM Estéreo da Rádio Comercial (RDP). Vivia-se o período dourado da arte radiofónica em Portugal, de que fui ouvinte indefectível. O fervilhar do FM com bom gosto, romantismo, arte e talento como nunca mais voltou a acontecer com tamanha intensidade. Hoje, neste domingo invernoso, apetecia-me voltar a escutar alguns desses programas dominicais. Partilho esse desejo impossível de concretizar socorrendo-me do livro "Telefonia"* do radialista Matos Maia. Os programas que hoje queria ouvir: À Sombra de Edison e As Noites Longas do FM Estéreo. Quem conheceu estes dois programas de rádio sabe avaliar bem a importância desta memória...num domingo qualquer.


À SOMBRA DE EDISON

Naquela década houve rádio e houve som em toda a sua generosidade. O som utilizado, inteligentemente, naquele que é o maior espectáculo do som: a rádio.
Naquela altura dizia-se: «aos domingos, entre as 11 da manhã e a 1 da tarde, passa a ser possível "ir ao cinema" sem sair de casa. Basta ligar o rádio, sintonizá-lo no FM Estéreo da Rádio Comercial, e fechar os olhos para ver À sombra de Edison
Depois do indiscutível e justíssimo sucesso do Em Órbita, Jorge Gil confessa que Á Sombra de Edison foi o trabalho que mais satisfação lhe deu.
À Sombra de Edison é um programa de rádio. À Sombra de Edison não é um programa de rádio. Transmite-se como se fosse, capta-se como se fosse, e vem noticiado como se fosse um programa de rádio. Ou melhor (pior) não se ouve como estamos habituados a ouvir rádio. Ousa apelar aos nossos outros sentidos. Ousa conceber o ouvinte como um ser pensante: ousa, enfim, pedir "Ouça".
"Para compreender a ousadia por trás do simples convite de Jorge Gil e de À Sombra de Edison - ouça rádio - seria preciso explicar porque é que não ouvimos o que não é rádio. Ou seja, da nossa parte, a falta de atenção, e da parte da rádio, a falta de ambição.
"Só aparentemente haverá uma hegemonia do som sobre a imagem e o velho argumento (a velha desculpa), segundo a qual as pessoas ouvem (música, rádio) enquanto estão a fazer outra coisa, esse álibi começa a não pegar.
O som, apenas som, pode absorver. Pode prender, recorrendo à imagem (imaginação) interior; mergulhando toda a sala onde está o rádio numa completa escuridão; o som pode ser a única coisa que há. E uma composição radiofónica, como mostra cada uma das emissões de À Sombra de Edison, pode, afinal, ser música.
Pode ser a música grande que se basta a si própria - que se ouve de olhos fechados, sem suportes visuais - aquela que dispensa porque não precisa de mais.
"Em rádio, logo à partida se aceita que o som não pode ser auto-suficiente. Daí ser concebida para acompanhar, mais ou menos subalterna, outras actividades: andar de automóvel, ler, passar a ferro, cozer pão, fazer amor, tomar banho.
O que quer dizer: antes de começar a lutar, já se dá por derrotada.

"Mas o som não tem de ser aia da imagem. Jogando com a sua própria natureza com o seu mistério - o som pode ser como as frases de um livro que lemos. "Ela era linda", lemos nós. E eu penso na Maria, e ele na Luísa, e ela na Teresa. Essa é a mágica indefinição da palavra escrita que não descreve até à morte: desenvolve a criatividade ao leitor e limpidamente se entrega com diferença.
"À Sombra de Edison assume, como nunca se fez na rádio portuguesa, esse incrível desafio que é recorrer à força que o som pode ter, para arrombar em quem o ouve as reservas criativas, as imaginações, os depósitos ideais que os demais programas de rádio, cabisbaixos com o seu complexo de inferioridade, envergonhadamente se contentam em deixar encerrados, para que outros meios (a literatura, o cinema, a música) as possa abrir.
"A partir de À Sombra de Edison, a rádio deixa de ser parasitária e subalterna, incompleta e complexada. Os sons (palavras, ruídos, música) agem então, como pontos de partida, para viragens estéticas e narrativas, filosóficas e históricas, que só o ouvinte poderá fazer; e, o que mais importa, cada um em direcção ao seu destino diferente.
"Ousando um Portugal num contínuo pluritemporal, À Sombra de Edison convida-nos (e por vezes força-nos) a pensar esta pátria de Pessoa e de Topo Gígio, dos Távoras e Salazares, de Marco Paulo e de Camões e reflectir sobre as misérias e grandezas passadas e presentes, sem cair em qualquer certeza que não a confusão; sem optar por nenhum dogma explicador que não a abertura a todas as interpretações de boa-fé; sem falsas vergonhas ou vaidades; e sem prepotências de uma única resposta, ou simplesmente de uma só pergunta.
" «Afinal esse amontoado de referências abertas, essa catrefa de pistas num mistério para o qual não existe chave de solução; afinal essa montagem de coisas que se passaram e que passam, que se ouviram, e que se ouvem, que se viram e se vêem, que se disseram e se dizem; afinal só assim estaremos, talvez mais perto do que Portugal foi e é.
"As perguntas são para fazer-se, e as respostas são para desejar-se mas, se as respostas não vierem, só um espírito tíbio e mesquinho deixaria de querer fazer mais perguntas - sejam outras, sejam as mesmas. É isso que faz À Sombra de Edison, utilizando o som (tudo aquilo passível de ser percebido pela audição) como catapulta formidável de perguntas. É fá-lo de uma maneira excessivamente bela para ser descrita: fora dele; fora de À Sombra de Edison, mas bem dentro de nós.

"Resta dizer: À Sombra de Edison é um programa de rádio. Transmite-se aos domingos, entre as 11 e as 13 horas, no FM estéreo da Rádio Comercial…"
Sob o título "Rádio", esta análise curiosa e importante, foi publicada no Jornal de Letras e assinada por Miguel Esteves Cardoso.
Ainda hoje À Sombra de Edison paira, como uma gigantesca sombra de alta qualidade e de superior originalidade, marcando uma época de ouro na rádio Portuguesa.

À SOMBRA DE EDISON
Rádio Comercial – FMEmissões: Fevereiro a Julho de 1982
Transmissão: Domingo (11:00 – 13:00)
Realização: Jorge Gil
Locução: Cândido Mota
Assistência técnica: Leonel Santos


AS NOITES LONGAS DO FM ESTÉREO
"Ao contrário do que se poderia pensar, trata-se de histórias curtíssimas, de fino humor, que procuram não a gargalhada, mas o sorriso cúmplice. "Essas pequenas histórias, que como pontuam belíssimos momentos musicais ao longo de todo o programa, são um exemplo de utilização inteligente, e diferente, do "non - sense" - Rui Cartaxo, Sete

"Com António Santos à cabeça e João Viegas na "sombra", sempre na mesma linha, "quem conta um conto aumenta um disco" e já está uma emissão de realização simples e linear e, no entanto, boa como poucas"- Diário de Notícias.

"Ou como se pode ser simultaneamente terno e mordaz, divertido e atrevido, paliativo e chocante. Uma taça de ternura seguida de um balde de água fria"- Diário de Lisboa

"As noites longas do FM Estéreo é daquelas emissões que o "contra" não perde. Boa música no horário certo, os textos curtos, bem lidos, quase sempre a merecer, pelo menos, um sorriso."- Correio da Manhã


Se já não se lembra do programa, ou, por azar seu, nunca ouviu uma emissão, aqui ficam dois exemplos do estilo de textos:

On The Rocks
"Quero mais gelo, por favor!" O empregado colocou duas pedras no copo. "Mais gelo. Estou cheio de calor. Mais gelo!" Dezoito pedras depois, o cliente continuava a pedir: "Mais gelo, ó homem, um pouco mais de gelo!"sub-repticiamente o empregado carregou no botão oculto pelo reposteiro. O icebergue que caiu do tecto raspou na testa do cliente, de leve, e aterrou no copo com grande estrondo.

O burro
Sempre lhe tinham chamado burro. Na escola os colegas riam-se dele. As namoradas troçavam do comprimento das orelhas. Consideravam-no teimoso e pouco inteligente. Quando não o apelidavam de burro, os nomes escolhidos eram ainda piores. Triste, abanou as orelhas e zurrou prolongadamente.

As Noite Longas do FM Estéreo
Rádio Comercial - FM

Emissões: de 1982 a 1988
Realização: António Santos
Transmissão: domingos das 21.00 às 24 horas
Equipa: António Santos, Eduarda Ferreira e João Viegas

* Círculo de Leitores / 1995 



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