quarta-feira, 31 de agosto de 2005

A canção perfeita















De vez em quando acontece. É raro, cada vez mais raro, mas acontece. A canção que nos encosta à parede. Que nos sacode, que provoca o remexer de sentimentos. É (ainda) assim ouvindo rádio. É claro que isto de "a canção perfeita" é em tudo muito subjectivo. Perfeitas são as canções de que mais gostamos. Depende muito da pessoa, do dia, da hora, da disposição com que a escutamos, das relações de memória que temos ao som dessa canção em particular, dos momentos ou das pessoas que se ligam a ela, etc. Mas há de facto no universo da música popular de todos os países as "canções perfeitas". No contexto mundial, especificamente no mundo ocidental, canções consideradas perfeitas é coisa que não falta, sob um manto quase consensual. Não vou avançar exemplos, não só porque são tão óbvios – e por isso inúteis – mas também porque lá iríamos cair, uma vez mais, no caldeirão da subjectividade. Aquela – e única – canção que quero aqui e agora definir como "a canção perfeita" (sem poder/querer fugir da omnipresente e omnipotente subjectividade) passa na rádio (!) e é em português!
Chama-se "Gelado de Verão", é um dos inéditos de António Variações, interpretado por David Fonseca no projecto Humanos.
Nunca fui entusiasta da antiga banda de David Fonseca, os Silence 4, exceptuando duas canções: a versão do original dos Erasure "A Little Respect" e "Sextos Sentidos" com participação de Sérgio Godinho. Nem tão pouco acho piada à carreira a solo de David Fonseca, cantando em inglês (bah!). Do mesmo modo confesso que não sou –nem nunca fui- um entusiasta do Fado, nem do fadista Camané, mas no projecto Humanos ambos ultrapassam pudores (?) preconceitos (?) expectativas (?) que deles tinha. Manuela Azevedo apenas confirmou uma vez mais – como se fosse preciso- toda a admiração que já tinha por ela. Acompanho a carreira dos Clã desde o primeiro disco (há dez anos!).
O tema "Maria Albertina", verdadeiro Hit do álbum Humanos, quase que asfixia o resto das canções, mas depois, com mais calma e atenção, e passada a euforia da senhora mãe da menina Vanessa, descobrimos todo o primor, todo o requinte dos arranjos, a eficácia das composições e a segurança (propriedade?) das interpretações.
É assim com a canção "Gelado de Verão". Esta composição inédita de António Variações vem incomodar uma vez mais as más consciências, para demonstrar repetidamente que, até hoje, não houve ainda outro artista português com autêntica dimensão de pop star, capaz de ombrear com qualquer grande nome da cena internacional. Mas agora é tarde demais para se fazer qualquer coisa quanto a isso.
O trabalho dos Humanos, editado em 2004, faz mais pela memória e futuro de António Variações que qualquer outra acção que tenha tido esse propósito.
A canção "Gelado de Verão" (03:38) faz pela música portuguesa o que outras poderiam fazer e não fazem, quer seja por falta de exposição/divulgação, quer seja meramente por falta de qualidade. E, espanto geral, passa na rádio! Terá a mesma permanência nas air plays que têm os singles dos gigantones pop-stars multinacionais? Com o verão a dar os últimos suspiros, é bom de ver (ouvir) que não. Aliás, nem sequer está a ter a mesma exposição...por ser em português?
Não vou colocar aqui a (magnífica) letra da canção "Gelado de Verão", porque seria despi-la do seu todo, da sua unidade. Comprem o disco, peçam emprestado, gravem, copiem, ou então – pasmem-se outra vez – ouçam-na na rádio! Ela (ainda) passa lá!

Francisco Mateus



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