segunda-feira, 16 de maio de 2005

O JORGE MORREU


Os loucos abrem os caminhos que depois emprestam aos sensatos
Carlo Dossi
















Estava a ser preparado um texto sobre relatos de futebol para este blogue. Dedicaria espaço à complementaridade de estilos diferentes de relatar, mas não necessariamente antagónicos, da fantástica dupla de narradores desportivos Fernando Correia/Jorge Perestrelo. Estava a ser pensado para depois da final da taça UEFA , final do campeonato da Superliga e depois da final da taça de Portugal.
É assim o destino. Atraiçoa-nos como o coração. Como o coração atraiçoou a vida de Jorge Perestrelo. Muito foi dito sobre o jornalista após a trágica notícia. Pouco ou nada posso acrescentar. Tive que deixar passar uns dias. Não é fácil falar sobre o inesperado desaparecimento de um companheiro da rádio. Mais que uma dor de alma, é uma dor de rádio... porque esta perde um dos seu grandes vultos em troca de um vazio que vai durar muito. Perda para a rádio portuguesa em geral, para a TSF em particular.
Muito se lhe criticou a falta de exactidão jornalística, entre outras coisas, mas a imparcialidade de Jorge Perestrelo foi tal que só no dia seguinte à sua morte fiquei a saber que ele era simpatizante do Benfica (e trabalhámos na mesma rádio durante onze anos...).
À parte dos excessos de linguagem e outros, a alegria contagiante e o entusiasmo não podiam deixar indiferente quem o ouvisse. Não havia meias tintas, para o melhor e para o pior. Havia nele um aguçado espírito crítico não só contra a corrupção no futebol, como nas manchas nebulosas da classe a que pertencia. E ele disse-o repetidas vezes: "Nos tempos da ditadura, quem fosse contra era censurado ou ia para a prisão. Hoje vai-se para a prateleira".
Por vezes perdia-se em assuntos e conversas paralelas, deixando o ouvinte sem relato e sem saber o que estava a acontecer em campo, fazendo com que os unicamente interessados no jogo de futebol, mudassem de estação à procura do relato propriamente dito. Mas também é verdade o contrário. Prendia muitos ouvintes que se divertiam com o "show" do Perestrelo.
Tendo como exemplo a frontalidade que sempre o caracterizou – e que tantos dissabores lhe causaram – há algo que não devia passar despercebido: no desfile de coristas (muita atenção: NEM TODOS!) que sempre aparecem nestas ocasiões, não faltaram os outrora detractores a tecerem os previsíveis, habituais, necessários (?) elogios. Os mesmos que já o quiseram fora da rádio. Pela hora da morte!
Na dor da perda irreversível, há que separar o bestial da besta que em todos nós habita. O Jorge ou era amado ou odiado, amado e odiado em simultâneo, mas nunca causou indiferença. Isso era impossível. Em muitos dos relatos dele que ouvi (desde o início dos anos 80 na Rádio Comercial) e dos muitos que "tive" que ouvir, havia um recorrente agradecimento aos "deuses do futebol". O Jorge nunca se cansou de afirmar com todas as palavras que o futebol lhe deu muito na vida e agradecia sentidamente esse privilégio. Agora é o futebol, enquanto espectáculo, que lhe fica a dever e muito. Serão necessárias pelo menos duas décadas para que apareça outro assim, mas daqui a vinte anos ainda haverá quem se lembre do estilo de Perestrelo e faça as naturais comparações. Não sabemos hoje se daqui a vinte anos existirão (ainda) relatos de futebol na rádio, ou sequer se existirá Rádio nos moldes actuais. Sabemos apenas que tudo muda e que nada se repete, e o Jorge era a prova provada (era preciso?) que são as pessoas que fazem a rádio e não o contrário. Ele era um criativo, pleno de cor e vivacidade. Lusófono dos três vértices: Portugal, África e Brasil.
Foram 56 anos de vida intensa, tensa, cheia. O coração tende a trair os que querem agarrar a vida com unhas e dentes.
Prematuramente, o Jorge morreu.


A mim, o que interessa é o espectáculo!
Almada Negreiros


Para memória, eis algumas das expressões mais conhecidas criadas por Perestrelo, proferidas em directo durante anos a fio e que ficaram no seu léxico rádiofónico:

"Que bonito é...as bandeiras desfraldadas ao vento...é disto que o meu povo gosta"

"Comigo...riiiiiiiiiiiiipa na rapaqueca"

"Eu, com a minha barriguinha, chegava e facturava"

"Que os deuses do futebol estejam com a selecção portuguesa"

"Ai, ai, ai que o meu coração não aguenta"

"Aguenta coração"

"É fora de jogo, tá levantado o pau"

"Daí, meu querido...nem que o jacaré tussa, digo eu"

"O que é que é isso, ó meu"

"Chuta-me essa merda"

"Bateu nas orelhas da bola"

"Fez a revienga, nion"

"Eu peço aos meus camaradas aí da Matinha para me darem mais graves nos auscultadores, por favor... faltam-me graves na voz"

"O pessoal lá da Matinha deve estar é a ver o canal 18..."

"Não conheço a chipala ali do camarada"

"Futebol sem golo é como comer muamba sem gindongo"

"Isto é um golo de merda! Não relato mais!"



<< Home